Autor: Luiz Carlos Freire
O
propósito de evocarmos nomes de personagens da história torna-se louvável -
creio - quando o associamos ao presente. Quando interagimos o episódio ou a
figura ilustre a fatos do hoje, ou a pessoas atuais, que têm alguma relação ao
objeto aventado, a persona notável
adquire visibilidade inteligente.
É com
essa visão que, hoje, ao comemorarmos a data do aniversário de nascimento de
Nísia Floresta Brasileira Augusta, lembro-me de Marineide Freire, ou melhor, a
professora Marineide Freire, de Tororomba.
Tororomba,
um pequeno distrito de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal,
distando-se 42 km dessa capital, possui quase tudo para impedir que seus
nativos alcem voos, mas não foi assim para a professora Marineide Freire.
Algumas
pessoas nascem e crescem sem se aperceber dos seus derredores. Muitas vezes a
incapacidade de notar as diversas problemáticas sociais, na qual muitas vezes
ela própria é vítima, torna-a um ser vegetativo, que passa a vida a contemplar
das janelas as mesmices e os nadas. Sua vida é o seu quintal.
Conheci
essa nisiaflorestense quando ela ainda não era universitária. Era uma pessoa
alegre, comunicativa, extrovertida e agradável. Uma vez ela me procurou na EMYP
para pedir algum material sobre a nossa Nísia. Disse que todos diziam que eu
possuía informações mais substanciais sobre o assunto. Atendi-a de pronto e
ficamos amigos, vamos dizer assim.
Certo
dia ela contou-me, feliz, que estava cursando Artes na Universidade Potiguar
(UNP). Como uma das minhas formações é nessa área, fiquei feliz e coloquei-me à
disposição para o que ela precisasse em termos de livros ou alguma orientação.
Até brinquei com Marineide, dizendo: “veja só, você buscou uma área na qual a
nossa Nísia era mestra; ela era apaixonada pelas artes e as descrevia como se
fosse uma artista de fato”. Ela quis saber porque eu disse aquilo e lá fomos
nós mergulhar nos escritos de Nísia.
Os
anos se passaram e ela findou desenvolvendo o seu estágio na EMYP. Foi uma
excelente profissional. Cheia de ideias, sempre pedindo opinião, sonhando mil
projetos... Logo ela se formou e integrou o quadro de professores municipais.
Ao mesmo tempo associou-se ao Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Nísia
Floresta, fundado pelo professor João Anastácio (salvo engano), tornando-se sua
diretora.
Em
pouco tempo ela evoluiu a olhos vistos. Muito consciente dos problemas sociais
de seu município, muito interessada em mudar a realidade do marasmo e do
ostracismo em que se encontrava a “terra do camarão”, enfim interessada em
interferir no cenário. E, curiosamente, sempre ela me abordava, perguntando
algo mais aprofundado sobre Nísia Floresta.
Certo
dia surgiu na cidade uma emissora de rádio comunitária muito curiosa: a “Rádio
Baobá”. Funcionava num moderno prédio construído pela escritora Angélica Timbó.
A referida emissora tinha uma linha interessante. Todas as pessoas que chegavam
ali, falavam. Óbvio que não era uma bagunça, como é de se supor. Tinha uma
regra, mas era literalmente uma rádio popular. Todos os assuntos iam a público.
E lá estava Marineide Freire engajada na “Rádio Baobá”, planejando mil coisas.
O
tempo passava e a cada dia ela ampliava o seu rol de amigos, inclusive pessoas
de outros municípios, com outras bagagens, enfim agigantavam os seus sonhos e
horizontes. A cada ano ela dava um salto positivo enquanto ser humano, enquanto
mulher, enquanto ser pensante e crítico.
Marineide
Freire não era mais a pessoa olhando da janela e vendo as bananeiras em
sucessivas safras. Ela se destacava assim como Nísia Floresta se destacou. Creio
que a nossa Nísia exerceu nela uma forte inspiração. Sua inteligência
fervilhava e ela não conseguia mais ficar parada.
Em
pouco tempo Marineide Freire estava envolvida em tudo, reuniões disso, daquilo
e daquilo outro, sempre de maneira destacada e com opinião própria. Não era
muito amante dos poderosos. Isso se tornou claro desde o início. E pudera. Não
combinava a uma personalidade tão esclarecida e insubmissa os moldes típicos
tradicionais, ou seja, o formato autoritário dos que fazem o poder nas cidades
interioranas. Isso é comum até mesmo nos lares, imagine no poder público.
Uma
vez ela me disse que não queria ser conduzida por lideres que tinham como
principal objetivo podar as pessoas. Por isso negou dar as mãos aos tais. Era
realmente uma mulher que passou a entender a liberdade na sua acepção plena. E
só assim ela alçaria voos altaneiros lentamente.
Uma
vez, num grande evento cujo nome da intelectual Nísia Floresta foi citado, ela
pediu a palavra e disse “quem aqui conhecia Nísia Floresta antes de Luís Carlos
Freire colocar os pés nessa em nossa cidade e inventar mil formas de falar
dela? Tudo o que aprendi sobre Nísia Floresta devo a ele, tudo o que nós daqui
sabemos, devemos a ele”.
Creio
que houve certo exagero, mas aquilo me marcou muito pela gratidão, pelo
respeito. Principalmente porque muitos fazem o contrário. Acredito que a
construção do parecer que ela me deu decorreu exatamente pela multiplicidade de
eventos que eu fazia sobre a nossa Nísia. E isso marcou-a. Creio.
Não
me lembro exatamente o dia e o ano que ela deixou de voar, mas foi um dia
cinza. Dia chuvoso e frio.
A
notícia chegou-me com as mais variadas interpretações e até mesmo sentenças. O
meu pai sempre disse que quando conhecemos verdadeiramente alguém o defendemos
até o fim. Uma das sentenças criadas sobre o triste episódio chocou-me de tal
forma que senti vontade de falar por ela.
É
inacreditável como muitos de nossos semelhantes são capazes de aventar ficções
absurdas sobre outrem, inclusive até “amigos” dela, pessoas que a conheciam há
muito mais tempo que eu. E que deveriam tê-la defendido.
Já
que falamos também de Nísia Floresta, cuja pessoa foi alvo das mais absurdas
sentenças, Marineide Freire viveu o mesmo. Nísia Floresta não teve quem a
defendesse em seu tempo, portanto eu não quis que isso se repetisse com aquela
professora respeitável, cuja inteligência se abria como a mais perfumada das
flores, defendendo a educação e a cultura, prometendo muito para a sociedade
nisiaflorestense.
Durante
a celebração da missa de encomenda de corpo, pedi a palavra e de maneira serena
e consciente, falei por ela, defendendo a sua moral, a sua idoneidade, a sua
respeitabilidade.
Hoje,
passados tantos anos do episódio, resolvo soprar a poeira que encobre o seu
nome e a sua história. E o faço para sensibilizar as novas gerações, para que
elas se lembrem de valorizar as pessoas visionárias e abnegadas iguais a ela. E
aprendam a proclamar apenas a verdade.
Talvez
você pense. Mas o que ela tanto fez? O cerne da questão não é matemático. É
reconhecermos o que ela pensava fazer por Nísia Floresta e não pôde, justamente
no momento que mais estava pronta intelectualmente.
Mas
na vida temos que estar prontos para tudo, e não cabe a nenhum ser humano
julgar as demais pessoas envolvidas nessa história, pois quem sabe o seu vôo
foi interrompido justamente pelos criacionismos, pelas ficções já tratadas
nesse texto.
Enfim
a nossa mestra se foi, mas embora pareça contraditório, PERMANECEU por sua
história, cuja síntese pode ser resumida numa só palavra: CORAGEM. E coragem é
para poucos, num cenário onde a maioria cede às hipocrisias. Boa parte quer o
colo do Poder Público, ao invés de lutar contra suas mazelas e transformá-lo
plenamente num veículo cidadão e de excelência, juntando-se às pessoas que
possuem o mesmo espírito de Marineide e Nísia Floresta. É mais fácil ser igual.
E
mais uma vez recordo Nísia Floresta, cuja síntese também era CORAGEM. Essa
coragem está em falta em muitos panoramas brasileiros, pois parte considerável
de seus atores sociais acha o bastante o uso de maquiagens sociais, alimentando
o âmago dos poderosos a troco de meros centavos, mesmo vendo os descasos para
com os mais diversos públicos. Principalmente o pobre. Marineide Freire, hoje,
é exemplo, pois condenava engodos, e nunca se curvou a quem não se curvava aos
pobres.
FONTE: http://nisiaflorestaporluiscarlosfreire.blogspot.com/